15.4.10

Primavera dos tempos

Michelangelo Caravaggio  1571 – 1610

Enquanto jovem e já lá vão uns anos, eu, que não me regulava por almanaques oficiais, era irreverente, selvagem, cacto em deserto estéril, vivia em contra ciclo com a natureza, e em defesa das minhas ideias muito próprias. Como todos os jovens, também eu deixei crescer espinhos no meu corpo para defesa do que eu achava que era o correcto. A seiva, essa, dava-a apenas aos que se abrigavam nas minhas ideias. Ser jovem, é a definição mais bela para descrever todas as contradições que viviam dentro de mim; não ter nunca a certeza de haver uma estação do ano certa, viver em constantes mutações com as quatros estações do ano, sem nunca saber qual delas, ocupava os meus sentimentos.

Lembro-me então que caminhava eu, pela minha cidade, ao fim do dia e senti um ventozinho daqueles que raramente se sente. Olhei para o sol e fui invadido por uma alegria única, talvez como se dentro do meu corpo, entrassem mil anjos. Fiquei feliz, assim com uma felicidade que nunca sentira, talvez divina ou quem sabe terrena, mas que eu ainda jovem, desconhecia ser possível sentir. Lembro-me de pensar: é hoje que entra a Primavera! Invadiu-me uma força vestida de sorrisos, e de repente, toda a minha cidade estava vestida de flores, as andorinhas dançavam no ar e eu, corria dentro de mim, de um lado para o outro, sem saber o que procurar. Encontrava-me num estado de pura felicidade. Continuo com a esperança de que esse dia volte a acontecer em mim, a querer sentir a Primavera como senti nesse ano. Foi o único ano em que verdadeiramente percebi que as Primaveras têm um dia que nascem, mas não num dia de calendário.

Há um momento dentro de mim que descobre o dia certo do seu nascimento. Hoje, ao fim do dia, irei dar um passeio a pé, saio com a esperança de poder sentir novamente o sopro desse vento, e se ele não me trouxer mil anjos, não será importante, basta apenas que me traga um anjo, uma flor e uma andorinha. Assim, terei eu, um motivo para fazer deste dia, o dia da entrada da Primavera dentro de mim. E se cacto fui, hoje cacto sou. A diferença, é que no lugar dos espinhos, nascem agora papoilas, e dentro destas, nascem Primaveras de esperança para cada palavra que escrevo.

Fui cacto em deserto estéril
Enquanto jovem
Vivia em contra ciclo com a natureza
Também eu
Deixei crescer espinhos no corpo
A seiva
Dava-a apenas aos que se abrigavam
Nas minhas ideias.

E se cacto fui
Hoje cacto sou
Dos espinhos
Nascem agora papoilas
E dentro destas
Nascem primaveras de esperança
Para cada palavra que escrevo

José Luís Lopes

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