22.1.10

preciso enlouquecer

Preciso de enlouquecer. De tornar ósseo o que escrevo. Ando nisto há dias.
O Herberto diz-me que talvez consiga se engolir uma lâmpada acesa.
Mas só que o herberto havia de saber que as lâmpadas provocam má digestão.
O herberto não percebe de micro-organismos ambulantes.
o herberto é toda uma ciência que ainda há-de vir.

Preciso enlouquecer. De esquecer tudo o que me lembra, alimentar o sangue com o que mais bárbaro existe por aí. As pedras que revestem sepulturas sempre são bons motivos de contemplação. Eu olha-as com a ternura de uma enxada e rasgo a face, como podia rasgar este céu para que caiam os livros.
Os poemas não precisam de comprimidos para que se entenda a sua dor. Sofrer é uma longa expressão, longa caminhada por esses montes desconhecidos e silenciosos adiante. Por que me fogem as mãos para o pescoço? Lá fora o frio faz atrasar um navio, e as mãos, tão trémulas, deixam de sonhar. Quem nasce rio morre rio?

Preciso enlouquecer. Tirar proveito dos tsunamis, trocar os pés pelas mãos e subir a rua que desce. Não basta pôr um dedo na alta voltagem para que o grito saia como uma bala. Gritar exige uma dor mais além. A poesia não é grão que se colha por aí. Ela compra e vende ao mais alto preço da dor, agitando a vara contra as palavras, num redemoinho de metáforas com cabeça, tronco e asas. As explicações tornam o poeta eunuco.

Nunca a vida soube dizer que é, quem foi. Uma imagem é sequência brutal de filhos a nascer à deriva. Por que me vês tão mar? Da vida conheço as grandes canções, os pescadores dos livros de História.
Se as flores possuem tímpanos é hora de falar da loucura com o sexo bem atiçado. Eu digo que a morte é estúpida pela mania que tem em dizer volto já. O único segredo é o amor. Que nos faz sonhar sem selo de garantia.

Preciso de enlouquecer, de tornar óbvio o sangue das palavras, dar uma passa num poema bastante enrolado e cair dentro de mim em serena manhã.
Do que sou falarei mais tarde, quando nascer a verdade na amputação do silêncio. Uma mulher abeirou-se de mim, trazia uma tocha acesa segura pelas duas mãos, perguntou-me, você é louco? Calado, dei quatro voltas ao pescoço e ofereci-lhe a minha cabeça.

1 comentário:

  1. Flávio, parabéns por este seu fabuloso texto.Faltam-me as palavras para expressar o quanto amei profundamente cada batimento desta belíssima prosa.

    Aproveito para, de novo, lhe entregar o meu mais profundo agradecimento pelo convite que me endereçou.Desejo e farei todos os possíveis para estar à altura desde maravilhoso projecto.Honrou-me como não imagina.Muito grato.
    Feliz fim-de-semana.

    Abração

    ResponderEliminar