17.3.10

Vozes de Burro não chegam ao céu


O ronco do S. Pedro ouvia-se por todo o Céu. Todos os anjinhos sabiam que depois do almoço o homem das chaves recolhia aos seus aposentos para descansar a sesta.
Depois de uma boa refeição, mesmo um santo e com pergaminhos na arte dos sacrifícios não resistia ao cair dum desassossego da bílis.
Ali, naquele espaço, não fazia calor, isso era coisa do Inferno. As temperaturas do Céu eram climatizadas, mas os hábitos terrenos de quem andou nos desertos da Galileia tinham viajado até ao Paraíso com o seu dono. Tinham sido tempos difíceis, agora era hora de aproveitar o descanso merecido e, todos os dias, aquela hora era sagrada, não vivesse ele num local sagrado.

Ouve-se um leve bater na porta. Diria até que era um batimento tímido…
S. Pedro acorda estremunhado e com voz irritadiça pergunta:
- Quem é?
Não havia diferença entre o timbre de voz e o ronco da sesta.
O Anjo que secretariava o S. Pedro, ainda novo nestas funções, tinha chegado ao Céu havia menos de duas semanas, envenenado por uma mulher que o atraiçoava com o padre da paróquia e, para não criar problemas à Santa Sé, arranjaram-lhe aquele lugarzinho para comprar o seu silêncio. Sim, porque ele também andava metido com a mulher do sacristão, que por sinal era filha do Padre.

- Sua eminência, está aqui um senhor que diz que é poeta do Luso Poemas. Eu já lhe disse que sua eminência estava a dormir, mas ele insiste em falar com sua eminência!
- Diz-lhe para vir mais tarde! Diz-lhe que estou ocupado, estou em oração e recolhido na cela em penitência.
- Sua eminência desculpe, mas já lhe disse isso tudo como me ensinou, mas ele insiste em ser atendido! Ameaçou até que, se não o atendesse rapidamente, fazia tal chinfrim que o Céu todo iria ficar apavorado, e assim todos ficariam a saber o que o traz por cá.
S. Pedro irritado e já sem paciência, voltou a repetir mas com uma voz que mais parecia um motor gripado…
- Diz-lhe que venha cá mais tarde ou mando-o para o Inferno!

- Sua eminência desculpe insistir, mas também já lhe disse isso. O poeta respondeu que do Inferno veio ele, e pelo que diz, Satanás não o aceitou. Está de cabeça perdida, e na minha opinião, está a passar das marcas e, segundo ele diz, do Luso Poemas não entra ninguém no Inferno, pois todos os que lá entraram, até à data, transformaram o Inferno num verdadeiro Inferno. Sua eminência desculpe, mas ouve-se em surdina por aqui, que o último poeta do Luso que entrou no Inferno, ao fim de meia dúzia de horas, armou semelhante burburinho que nem a intervenção do Diabo que estava de serviço conseguiu acalmar os ânimos. Foi necessária mesmo a intervenção de Lúcifer para fazer baixar a temperatura. Saiba também sua eminência que tudo isto aconteceu por causa de um comentário a uma poetisa, a dita senhora andava no Inferno com um casaco de pele de leopardo! Compreende-se, com aquele calor e a flustreca a pavonear-se de casaco e botas de saltos altos, e pior, de cachecol de lã! E ainda por cima, os poetas machos não tiravam olhos da sirigaita. Todo o dia era beijinho para ali, beijinho para acolá, e as outras que andavam de biquíni e fio dental, sentiram-se ameaçadas e com toda a razão, uma pouca-vergonha!!! O que faço Eminência?

- Meu filho, o que é que ele disse que fazia se não o atendesse?
- Disse que berrava!
- Então não ligues, deixa-o berrar, vozes de burro não chegam ao céu. Fecha a porta, e não voltes a incomodar-me quando estou a meditar, muito menos por poetas do Luso Poemas.
Se criar muitos problemas fala com o chefe, e diz-lhe que o melhor é fazer um milagre e mandar outra vez o gajo para baixo. Não quero aqui corja dessa, só trazem problemas! Agora vai…

José Luís Lopes

Sem comentários:

Enviar um comentário