12.6.12

a morrer do mundo




 
pedro américo




como é que um homem deita o corpo a descansar se o descanso está a falecer – tudo o que vejo é apatia. tudo o que sinto é desespero. tudo o que faz cor dá negro – tudo está falecido antes de estar – e olho. e volto a olhar. e tudo está a desaparecer. até a luz. ainda hoje pela manhã era dia aberto e agora já é noite – quer dizer. ainda não é. mas já se faz anunciar – e rodo para norte o corpo. e depois para sul. sem saber como sossegar – entre mim e o nada  uma flor. desgostosa. desamparada. desprotegida. sem nome – nunca soube o nome de flores. talvez seja um girassol. um jacinto. uma  estrelícia. uma papoila. ou uma rosa – não interessa o nome dos que estão doentes. afinal está murcha. está a falecer. talvez falta de chuva. não chove dentro das casas. ou então. talvez seja falta de pessoas capazes de trazer a água do céu para casa . não sei. se soubesse talvez pudesse ajudar. mas não sei – sei tão pouco da vida – estou somente capaz de observar as coisas. sinto-me estranho. esquisito. talvez não venha de mim este mal estar. talvez sejam os outros a fazer de mim um homem sem certeza na vida – para ser sincero não sei. eu estou igual. sempre fui pálido. com olheiras. lábios gretados. e a cabeça sem saber para que lado tombar. sempre me senti a falecer. sempre olhei mais para o passado do que para o futuro. aquele é certo. e no futuro há sempre homens a olhar para longe – agora tudo mudou. não há futuro. e as pessoas falecem antes do reconhecimento do óbito. e já não há gritos porque não há corpos para chorar. e já não há flores porque também estas já faleceram antes dos corpos. e já não há campas abertas porque o coveiro faleceu no dia em que lhe roubaram a pá. e já não há missas porque o padre faleceu antes de deus mandar o seu filho à terra para falecer por gente que não vale coisa nenhuma – também deus já sabia do falecimento do seu filho mesmo antes de falecer. e cristo também sabia que tinha nascido para falecer numa cruz feita por homens que nunca trazem água para as flores doentes e sem nome – todos querem um pedaço de tempo a qualquer preço – e tudo seca quando as nuvens não carregam água. e judas sabia que só o falecimento do filho do criador daria sentido à sua vida. e a vida está cheia de gente que só aparece com corpos a falecer – as moedas de judas só entram na narração para criar enredo. faleceu para ficar na história. faleceu pela ganância. e nunca ressuscitou. e nunca soube o nome de uma flor. e nunca trouxe água na palma da mão. e o mar morto enfestado de sal não deixa o corpo desaparecer. e o mal sempre à tona da água. e o homem também – só não sei o que vou fazer ao meu corpo para o fazer descansar. estou numa história que não é minha. não consigo dormir. não consigo amar as vozes que reconheço. não consigo sossegar. e tudo dentro de mim está cada vez mais distante do mundo dos que ainda não faleceram – quando era novo sabia tudo e agora nunca sei nada. talvez esteja a falecer também das ideias – e o mundo anda. e eles mandam o mundo andar como se o pão sobrasse pela falta de bocas. e uns comem. e outros olham.  e a chuva parada entre o céu e a terra. e os pássaros com asas de cera gritam pelo nome da santíssima trindade e moisés às gargalhadas. não há terra prometida. nem vida depois da morte. e a igreja falecida manda rezar. e o comunismo falecido manda gritar. e o capitalismo falecido manda roubar. e as doutrinas na mão de gente que nunca faleceu por nunca ter nascido para a vida das flores sem nome. dos pássaros. da chuva. das manhãs feitas de sol. da juventude. dos doentes. da mulher esperança. do pai de mãos ásperas. da justiça. da rua verde. da cerejeira. do cão. do abraço. do olá. do bom dia. da história contada à cabeceira da cama ao filho com medo de um fantasma que se chama papão. da estrela polar. e da lua que cresce e minga com os dias que fazem dos velhos gente sábia e respeitada – nunca se ama o que não tem nome. nunca falece o que não nasceu para os olhos. o que não tem rosto – faleço. faleço todos os dias – escrevo para continuar a falecer desta dor que nunca foi capaz de saber viver dentro de um corpo que teima em parecer saudável – um dia falecerá de vez



sampaio rego


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