sámal joensen-mikines
2.
gosto da palavra partida. não gosto da palavra morte – quando partimos deixamos sempre qualquer coisa para trás que um dia voltamos para encontrar. um livro. uma cadeira. uma história. uma foto com um sorriso enganoso. um sinal que nos descreve por dentro. um gesto calmo marcado por contornos subtis. leves. delicados. feitos de carvão abandonado dum fogo que “arde[u] sem se ver”. e tudo isto guardado num jeito de andar que não é de mais ninguém. de mais nada no mundo. é só meu – gosto da palavra partir porque é vaga. verbo. verbo de ação. onde o sujeito se desloca para algum lugar. ninguém sabe para onde. nem em que direção. mas vai – partir. partiu. partirás. partirei. não importa a forma verbal. gosto da palavra. deixa a ideia de que quando partimos alguém fica à nossa espera num ideal sebastianista – um dia. numa manhã de nevoeiro. estamos de volta. chegamos e tudo estará igual. ninguém envelheceu. e todas as coisas no mesmo lugar inacessíveis às mãos – há gente que parte tão devagarinho que verdadeiramente nunca chega a partir. e as imagens aqui paradas para sempre. os olhos em cima do jornal repousam os óculos castanhos nostálgicos e o corpo a cair para a frente contraria a fotografia na caderneta militar. capa preta. folhas amarelas. ombros em confronto com o quico caído ligeiramente para a frente da vida. a dizer ao bigode à errol flynn que a boca anda agitada pela procura de beijos – tudo são imagens – as pernas a fazer andar o corpo. de uma lado para o outro. um braço para a frente e outro em espera. balança num porta-chaves alfa romeu – calça creme. casaco azul marinho apertado por uns botões de metal dourado forte. e no cimo do corpo. um estupor de um lenço ao pescoço. cheio de cores fortes a dizer que a vida é consumida num carro desportivo de alta cilindrada – à cabeceira da mesa a sombra assenta nos cotovelos. os lábios batucam desespero que ninguém ouve. o silêncio é agora feito num caminho de memórias que já não são o presente e o peito sente os gestos presos às cadeiras. com nomes. estamos todos ali. todos em carne. e o ar dos pulmões cai lentamente para um prato sopeiro vazio e a bucha de pão partida em bocados certos como o número de lugares na mesa – a roupa do dia seguinte à espera na cadeira. camisa engomada. calças dobradas pelas vincas com o cinto a roçar a alcatifa. sapatos bem engraxados e alinhados pela biqueira. cordões abertos em sorrisos à espera dos pés. e depois aquele quadro na parede diz que a vida é quase sempre feita no outono. as folhas mortas no chão esperam por um vento que nunca acontece. e a casa de pedra anuncia vida. a chaminé não para de bocejar fumo que não corre – naturezas mortas de pintores que partiram. sem saber que deixaram a vida parada para sempre em quadros de tabopan – quando partir não quero que a minha vida fique assim parada. não me quero em pinturas com pessoas que não vão para lado nenhum. paradas como o fumo na casa de pedra – quando partir quero virar as costas à vida com a certeza de que para trás tudo fica igual. continuará o movimento. e toda a gente de um lado para o outro a gastar a vida como sabe. falam. protestam. trabalham. sorriem. fazem crescer famílias. amam-se. recordam os que partiram felizes – quero olhar para trás e ouvir os meus dizerem: lembras-te dos kilos de perfume com que aparecia pela manhã. como era teimoso. raio de feitio. gostava daquele casaco preto de bombazine com cotoveleiras de pele castanha. assentava-lhe bem. fazia-o mais magro. mais elegante. havia dias em que nem parecia ele. aparecia tão esticado. aquele cabelo sempre a cair para trás – mas o que eu mais gostava mesmo era aquela mania de que sabia escrever e o like no facebook era obrigatório. de que se esforçava não há dúvidas – quero partir com a saudade a ser a razão da conversa. e as memórias feitas de corpos sãos. corpos contentes. corpos ágeis. corpos sábios. onde o mundo roda porque as pessoas rodam de um lado para o outro com tranquilidade por saberem que quem parte parte feliz – esta gente que roda sem parar ainda não descobriu que um dia também terá de partir – gente que amo. gente nuvem. todos os dias guarda uma gota. e depois outra e mais outra. e o corpo cada vez mais feito de água-afecto. água-amor. água-companheirismo. água-amigo. água-vida e um dia. sem que no horizonte se vislumbre sinal de tempestade. o corpo vai tombar e toda água vai partir em torrente levando tudo o que é alegria. para sempre – não há forma das mãos segurarem esta água. nem a dor de um corpo seco. e tudo o que foi deixou de ser. e o que vem nunca será igual ao que partiu – só o tempo é capaz de amainar o corpo. e o que era enxurrada transforma-se numa linha de água límpida. cristalina. pura. como tudo o que chega ao mundo pela primeira vez caminhando pelos sulcos da pele. de um modo tão suave que mais parece uma bailarina em pontas. a rodar sobre si como se quisesse imitar o mundo quando gera vida e sem que se aperceba chega ao chão como toda a água dos rios chega aos oceanos. e os pés para sempre húmidos – entro na cama. ajeito o corpo ao travesseiro e ali permaneço quieto. o coração bate nos ouvidos. o cobertor tapa o frio do mundo. olhos serrados. silêncio em espera. e quando a voz atravessa o sonho tudo é como dantes. volto a ter tudo o que tinha antes de todas as partidas – como diz shakespeare “um homem que não se alimenta de seus sonhos, envelhece cedo” – o meu sonho é escolher o dia da partida. não quero morrer sem memória. não quero morrer em dor. não quero que ninguém me veja fechar os olhos. ou me abrace em lágrimas. quero partir. partir como parte o vento das janelas – “os covardes morrem mais vezes antes da morte; o valente experimenta o gosto da morte [partida] apenas uma vez" – gosto da palavra partir porque imita as andorinhas. o fim do verão. uma nuvem no céu. uma gota de chuva apanhada pelo oceano. um vento fresquinho. e o bando parte em fuga para uma vida melhor. para o sul quente – a esperança está de volta. novas casas. novos telhados. novos caleiros. novos fios elétricos. novas árvores. frutos sem nome. e um novo mundo. um novo recomeço prometido pela intuição de saber partir à hora certa – gosto das partidas de quem acredita que há um mundo novo à sua espera. diz-se que para encontrar este novo mundo é obrigatório partir pela vontade de deus – confesso que não sei muito bem se assim é. já muitas vezes escrevi que a minha relação com deus não é a mesma desde o dia em que o meu pai morreu. não partiu. morreu como morrem os cães abandonados. cercado de gente branca sem nome. sem memória. sem semelhanças. sem uma mão que o ajudasse a partir como o vento por aquela janela que dava para o mundo das andorinhas – morreu. gelado. sozinho. perdido no escuro. onde a luz não existe. podia ter partido. mas não. morreu. morreu ele e morri eu e tudo o que escrevo é agora pela revolta de saber que não quero morrer assim. nunca. quero partir – junto todas as minha coisas numa mala pequena. uma camisa branca. um casaquinho de lã que me aconchegue o corpo às memórias. uma gravata preta. uns sapatos de sola de borracha porque não gosto de sentir os pés frios. um par de lâminas. gosto de ter um ar asseado. sempre ouvi dizer que um homem de barba bem feita não necessita de roupa. um aftershave. umas quantas fotos. um livro. nem sei bem qual. talvez em branco. assim poderei escrever de novo todas as palavras que ninguém compreendeu. dar-lhes outro trilho. outro rumo. com a caneta mais inclinada para sul. mais sol. mais calor. mais mar. mais gaivotas. mais esperança. juntá-las a outras que ficaram esquecidas nas mãos. e por fim reescrever-me. de novo para dizer exactamente o mesmo. eu só sei escrever o que sou – a escrita não muda o homem. ensina-o a ver-se tal e qual como é – pensando bem talvez alterasse esta mania de escrever na primeira pessoa e passasse a escrever na terceira. diria então: eles pensam que são donos do tempo e depois partimos. partimos sem destino. para sempre – parto. para trás deixo o corpo. fica como sempre foi. grande. firme. hirto. com o cabelo empastado em gel superforte. e o cheiro ao perfume jean paul gaultier a dizer em voz grossa: sou vaidoso. até já. até já. não se esqueçam que não morri. um homem não morre. parte – como dizia lucan “os deuses escondem dos homens a beleza da morte [partida] para levá-los a aguentar a vida” – mas ainda não parti. ainda ando por aqui a desiludir – estou debilitado. desalentado. desanimado. desgostoso. estou exausto. tão cansado que as palavras já não se amarram ao papel. tudo o que penso ou escrevo parte em busca de descanso e o corpo ainda aqui. quase moribundo. e as palavras por dentro a sofrer num lugar que já não conheço. escuro. tão escuro que já não consigo ver com clareza o que dizem – estou desesperado nesta certeza de partir. gostava de ter dúvidas. gostava de estar cortado ao meio. não estou. estou inteiro. firme. pela primeira vez todo eu sou certeza. todo eu sou partida – tenho medo. ainda amo tanta gente – partirei então como uma andorinha. descubro esse outro lugar onde a vida é vivida sem interrogações. sem esta dor que me nasceu num canto qualquer do corpo. eu nunca soube onde e as mãos por dentro a revolver tudo o que sou e cada vez a encontrar menos de mim – estou cada dia mais sozinho. estou cada dia mais parecido com aqueles que já partiram. branco. gelado. lábios colados com cola. ossos partidos. velas. fumarolas. os anjos cantam a canção dos rejeitados: não aceitamos traidores. não aceitamos. não aceitamos – silêncio. e o corpo sem uma única lágrima. coberto por um tule que já não tapa coisa nenhuma. nem desespero. nem revolta. nem raiva. nem saudade. nada. em cima em forma de cruz só a honra brilha como o ouro a palavra foi cumprida. sempre cumpri com a minha palavra. é de família – finalmente o céu dos céus. o jardim dos jardins. o lugar onde aqueles que partiram esperam por aqueles que livremente decidiram partir. a colina dos reencontros – fernando pessoa dizia: “morrer é apenas não ser visto. Morrer é a curva da estrada” – eu digo: partir é apenas não ser visto – partir é a curva da estrada
continua
sampaio rego
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