14.10.12

sophia




a. c. delfino




não há génios. nada me dizem as palavras quando de costas para a realidade – todo aquele que trabalha à procura da palavra mais-que-perfeita. sofre – escrevo acoberto de paredes brancas. tudo é branco. tudo menos a abertura da janela. dos olhos – entre o olhar e a luz uma maçã enorme. vermelha e imóvel brilha no tampo da mesa – na parede o reflexo distorce a verdade – sombra – duas realidades. dois tamanhos para um só objecto – na janela o caixilho quadrado guarda um mundo que se quer azul oceano. encoberto por um tule feito a ponto cruz. um círculo sem princípio nem fim. transparente – tudo o que é mar é brilho. tudo menos os barcos à vela pousados num horizonte que a cor dos olhos desconhece – presas ao caixilho quadrado também as gaivotas voam em círculo – às mãos o trabalho. aos olhos a contemplação. ao coração o sentimento – como artesão. de sol a sol. procuro nas palavras o fabrico do belo. faço-o num silêncio aflito que por ser só meu ninguém sabe que existe – há neste escrever “uma felicidade irrecusável. nua e inteira”



*dedicado a sophia mello breyner



nota de autor:

sofhia mello breyner aquando do seu discurso de 11 de julho de 1964. na sociedade portuguesa de escritores. na entrega do grande prémio de poesia à sua obra livro sexto:

“A coisa mais antiga de que me lembro é dum quarto em frente do mar dentro do qual estava, poisada em cima duma mesa, uma maçã enorme e vermelha. Do brilho do mar e do vermelho da maçã erguia-se uma felicidade irrecusável, nua e inteira. Não era nada de fantástico, não era nada de imaginário: era a própria presença do real que eu descobria. Mais tarde a obra de outros artistas veio confirmar a objectividade do meu próprio olhar. Em Homero reconheci essa felicidade nua e inteira, esse esplendor da presença das coisas. Eu também a reconheci, intensa, atenta e acesa na pintura de Amadeu de Souza Cardoso. Dizer que a obra de arte faz parte da cultura é uma coisa um pouco escolar e artificial. A obra de arte faz parte do real e é destino, realização, salvação e vida.”




sampaio rego


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