O que se segue, são flash's de instantes remotos, dos mais antigos que possuo; arrancados lá bem do fundo do poço das minhas lembranças.
Meti-me numa cápsula do tempo e viajei sem destino.
Achei-me no mesmo lugar de sempre, de onde, na verdade, nunca cheguei a partir...
Aquele lugar é refém das minhas memórias e é para lá que fujo em segredo tantas e tantas vezes quando me quero esconder deste tempo de agora.
E vou pelos carreiros que conheço como as minhas próprias mãos. Tanto na ida como na vinda, tenho a companhia sempre pronta e desinteressada dos pardais e dos cucos esquivos, que me seguem lá no alto dos ramos dos pinheiros que me levam pela sombra.
A velha casa de pedra serve-me de abrigo aquando da trovoada inesperada. Existe lá uma prateleira com livros já meio desfeitos e aos quais faltam muitas folhas, mas, nas que lhes restam, há sempre qualquer coisa que ainda não tinha visto nem lido...
O velho abrunheiro, ao fundo da quelhada grande, oferece-me a sombra apetecível onde me deito descansada sob a relva e durmo uma sesta merecida.
Há joaninhas que se misturam com morangos selvagens, salpicando de vermelho o ervascal abandonado por onde me entretenho a brincar enquanto a minha mãe trata da rega dos feijoeiros ali ao lado.
Pela noitinha, de volta a casa, eu e os cabritos saltitamos contentes pelos muros adiante, ou não fossemos todos crianças!
É dia da matança do porco. Levanto-me mais cedo que o costume e corro para o mais longe que posso. Sento-me numa pedra, meto os dedos nos ouvidos (não quero ouvir os guinchos do pobre coitado) e espero uma boa meia hora... depois regresso.
Um serão quente. O canto dos grilos a cortar o silêncio. Um petromax na mão, alumia-nos o caminho. Eu às cavalitas do meu pai. Um caminho estreito. Uma casa com um outro petromax pendurado no tecto. Um monte de espigas à espera de serem debulhadas... meia dúzia de pessoas, cada uma com o seu mangual a bater uma a uma e o milho vai saltando e formando um imenso lago de grãos...
Há conversas, há risos e gargalhadas, há histórias de outros tempos ainda mais remotos. É hora de voltar. Amanhã o milho irá ao sol...
De tamancos com sola de pau, sobe ligeira a escada encostada aos ramos da oliveira grande do pomar. A mãe, aflita, chama-a, mas ela, teimosa, finge que não ouve e sobe cada vez mais depressa. Sobe até ao fim; até ao último banço da escada de madeira...
A fogueira crepitava e erguia labaredas altas, tal como ela gostava.
Sentadas no bordo, de mãos e pés esticados em direcção ao lume, riamos despreocupadas. Talvez o nosso riso se devesse apenas ao conforto de ver aquele lume a arder ali mesmo à nossa frente, a aquecer-nos por fora e por dentro. Nunca mais comi uma sopa de couves aferventada tão saborosa como aquela... Ao lado, uma malga de vinho e um naco de broa com sardinha, acabadinha de sair das brasas da fogueira.
Noutro dia, no telhado da mesma casa, sentadas nas lajes aquecidas pelo sol de Março, pedia-me que lhe enfiasse as agulhas com linha preta porque os seus olhos cor de mar rasavam-se de água e não a deixavam vislumbrar o buraco minúsculo da agulha. Estava sempre a coser qualquer coisa enquanto me ía contando histórias de lobos e de homens.
gostei bastante deste texto poético.
ResponderEliminartem a sua própria casa.
abraço
Fiz uma viagem ao passado. Tantas coisas que eu mesma vivi! Sao memorias assim que nos dizem que eem alguma parte do tempo ja estivemos vivos. Parabens! Fernanda
ResponderEliminarFlávio e Fernanda
ResponderEliminarMuito obrigado pelas vossas leituras e considerações a este e a todos os escritos que por aqui tenho deixado com prazer.
Neste em especial, pelo que, de alguma forma, vos fez sentir.
Sim, está recheado de sensações e emoções muito íntimas que fazem parte da minha grande fortuna de sentimentos.
um beijo para cada um