16.5.11

Livros de barrigas de aluguer









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Estás a olhar para onde, ou para quem? Talvez estejas a pensar se realmente um livro encerra em si mesmo uma ambição final, apocalíptica, genial, o momento em que morre o homem e nasce o autor, o artista, isto é, enterra-se o amadorismo e emerge a pretensão do “homem-arte” que ama as letras, letras com assinatura, letras para sempre, letras imortais do homem-escritor, génio, o profissional.

Percebo que a ambição é boa, e a ambição com inteligência faz parte das qualidades do homem, evita a inércia e obriga o mundo caminhar. Sem ambição, este nosso mundo, ainda estaria na pré-história. Imaginem os nossos carismáticos autores no passado, que, em vez de livros de baixo do braço, carregavam pedras para lhes permitir fazer lume. Incendiar para sobreviver em vez de incendiar para encantar, armadilhar relações, era um desastre para a arte.

Tudo o que alcançamos até aos nossos dias deve-se à ambição, bem sei que alguma é desmedida, mas não há maneira de controlar a ambição, ou há ou não há, boa ou má, o homem quer sempre mais e mais. É assim a história do mundo, tantas vezes triste faz-nos ficar estarrecidos com o resultado do caminho que o homem dá à sua vida. É nestes momentos que somos obrigados a parar e reflectir, olhar para o homem que é nosso companheiro, camarada, amigo e que de repente se torna num estranho, um louco, um demónio e concluir que afinal o homem é capaz de tudo pela visibilidade, vaidade e riqueza. O homem quer a imortalidade, quer um lugar na História a qualquer preço.

Sem ambição o mundo era, com toda a certeza, um local sem sal, onde não apeteceria viver. Mas então o que pensar e dizer da ambição? Como dosear a ambição? Como terei eu a certeza que a minha ambição é a correcta e a dos outros exagerada, descabida e tonta. Será possível criticar a ambição, mesmo quando esta se torna numa castração daquele que deveria ser o objectivo principal do homem enquanto ser com alma, com sentimentos, com o objectivo de alcançar a suprema felicidade, para si e para todos aquele que o rodeiam.

A ambição não pode ter limites a não ser aqueles que derivam dos conceitos filosóficos do certo e do errado, do bem e do mal. Bem sei que também muitos destes conceitos são subjectivos, o que é errado para mim pode não ser para o outro, mas obrigatoriamente temos de nos reger por alguma tabela de valores, e o melhor será ter à mão a do mundo ocidental, no meu entender a mais justa, não somos felizes agora mas acreditamos sempre que um dia ainda vamos ser. Não há regra, norma, lei para o tamanho da ambição, no entanto, esta deve sempre estar nos limites da nossa aptidão para a sua concretização.

Uma ambição impossível seria loucura, mas uma ambição sem dificuldade seria mentira ao próprio ego. Se assim não for, então, não é suficientemente forte o nosso querer, a ambição passaria a ser assim uma coisa como ir à feira de antiguidades e comprar um ferro velho que em tempos foi útil, mas nos nossos dias nada acrescenta ao belo, serve apenas para decorar móveis do IKEA, modernos, na moda, tecnológicos, à medida dos sonhos fáceis do homem do século XXI.

Estes móveis feitos em série, massificados, para serem baratos e facilmente renováveis, são feitos por gente que há muito tempo perdeu a dignidade da arte no trabalho, gente que num passado recente tinha nome. Falo do artesão, do homem que aprendeu uma arte à custa do tempo, tempo ganho a uma morte certa, que mais tarde ou mais cedo acabará por atirar para a terra todo o saber de uma vida feita pelo brio de quem aprendeu com sacrifício. Este homem em vias de extinção, sabe que o tempo é o seu único amigo, mas também sabe que mais dia, menos dia é ele, que numa certa noite de insónias, sem estrelas no céu, lhe diz: acabou o teu tempo de aprendizagem, agora serás apenas mais um homem como todos os outros, terás terra por cima de todos os dias que passaste a aprender.

Este artesão que faz coisas, sabe que apenas pode contar com a sua teimosia para ser singular, e com as suas ferramentas para evoluir. Este artista sabe que o seu trabalho é delicado, metódico e único, é como fazer um poema com rimas emparelhadas, com concordâncias, com regras gramaticais, com elegância, com genialidade, com o belo a perder de vista, onde o trabalho representa sempre uma obra única, perfeita e eterna. Este homem, o artesão aprendeu com o seu mestre que a arte tem regras próprias, regras baseadas no fazer e refazer, todos os dias, todos os meses, todos os anos, e sempre cada dia com mais dedicação, com mais sacrifício, sorrindo para o tempo como se fosse seu dono. A este homem só o trabalho o compreende e só ele conhece todas as suas especificidades que nunca o deixam sossegar. Ao fim de mais um dia de oficina, e já depois da janela guardar a noite, despede-se da sua obra com um até já, e na última parede, aquela que fica ao pé da porta que dá para um outro mundo que nunca tem tempo para o entender, há um quadro onde todas as ferramentas têm um lugar.

Desenhadas pelo punho, as suas impressões físicas, as mais nobres em destaque, as outras, mais longe dos olhos mas com a mesma dignidade. Ele sabe que todas são importantes, umas não são nada sem as outras, e ele também não é nada sem as suas ferramentas. Antes de recolher a sua casa onde aprendeu a descansar o corpo, com a dignidade da vida feita do pão que o diabo amassou, coloca uma a uma das ferramentas no lugar correspondente, verifica se nenhuma das tenazes com que se amarra á vida se perdeu, como o pastor conta as suas ovelhas este homem conta as suas ferramentas e deixa-as a descansar dos seus sonhos até à primeira luz do dia.

Este homem, fazedor de sonhos, sabe que este seu quadro de utensílios é como um dicionário para o escriba, é o seu léxico, onde guarda as palavras difíceis, os verbos, as adjectivações. Ele sabe que é ali que a sua alma está encastrada, dentro dos punhos de madeira já gastos pelo tempo que leva a afagar as suas ferramentas, com carinho, com ternura, com o amor feito pelos anos que leva a encantar com o seu trabalho. Este trabalho, bonito ou feio, nunca poderá arder sem que a alma chore, nunca poderá sucumbir ao tempo sem que o próprio artesão sucumba, a vida dentro deste homem sobrevive pelo esforço das mãos.

Outras coisas são aquilo a que acabamos por nunca ganhar amor, quando as adquirimos já sabemos que mais tarde ou mais cedo são para cair no lume, arder. Assim são a maior parte dos livros feitos nos dias de hoje, sem esforço, sem aprendizagem, sem carinho, sem sofrimento, sem tempo para lhes ganharmos amor, sem tempo para comunicar com o tempo que temos, nascem condenados a uma morte prematura. São assim a maior parte dos livros editados, convidamos os amigos para um nascimento que afinal é um velório. O defunteiro faz então o seu papel, é este mesmo homem que diz que não quer que ninguém morra mas quer que o negócio corra, recorre ao seu cardápio de bem dizer, e encontra com facilidade uma citação de um grande autor que fez história no mundo da arte de escrever, compara o incomparável, projecta futuros que nunca serão, adjectiva com superlativos de superioridade o que sempre foi um superlativo medíocre, enquanto a pequena plateia ajeita os sorrisos.

Está toda a gente feliz, o artista que escreve, o artista que imprime as palavras, mesmo aquelas que ainda não foram inventadas, os vereadores da cultura, arranjaram mais arte para trocar por votos, enfim um verdadeiro dia de festa, Deus e os santos e os romeiros felizes. Arrebentam as palmas, acenam-se as cabeças em sinal de concordância com toda a história do artista; mais uma vez as palmas iluminam todo o esplendor do momento, é o fogo-de-artifício que faltava para passarmos aos autógrafos.

Para o homem fazedor de livros um autor é sempre um autor e um livro sempre será livro, e um punhado de euros será sempre um punhado de cultura no seu bolso. Esgota-se o tempo, na sala os sorrisos desfalecem, as vozes estão cada vez mais distantes e o mundo na rua tem a crua realidade do tempo real, em pouco mais de uma hora todos os nossos sonhos morrem. Os amigos partem, deixam ficar beijos e abraços em agonia, nas suas mãos o livro autografado com uma caligrafia trémula, moribunda, pesarosa por saber que o seu tempo está a terminar.

Brevemente, este livro, envolto em sonhos, juntar-se-á a mais uma centena de livros, parados na estante de todos os livros, dos que trabalharam com esforço, como o meu estimado artesão e aqueles que fruto dos tempos conseguiram tomar posse de um espaço efémero como o IKEA e ali ficarão para sempre, sem olhos, sem mãos, sem leitura e sem rosto.




José Luís Lopes



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