5.2.12

il mangiatore di fagioli

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                                  annibale carracci - il mangiatore di fagioli
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pergunto-me: para onde estará o homem a olhar? não sei. não é possível saber. o artista esqueceu-se de o deixar anotado – era tão fácil. bastava uma nota de rodapé e este meu dia nunca teria acontecido – agora estou aqui perdido em congeminações que nunca passarão de meros exercícios num raciocínio sem qualquer valor académico – sinto-me também um quadro. sem lógica. irracional. sem cores. linhas. contornos. sombras. dobras. estilo. iluminação. sem nada. vazio. perdido no branco da tela ainda virgem –  nunca serei um rococó – sou imaginação e a imaginação não é nada aos olhos do desconhecido – olho. olho e volto a olhar a pintura e não sei o que vejo naqueles olhos negros – sei apenas o que o pintor quis que eu soubesse: homem do povo. chapéu de palha. unhas sujas dentro de umas mão rudes. como se dissesse: é delas que sobrevivo. – o que teria levado carraci a pintar um homem do povo? o que escondia este homem dentro de si de tão importante que obrigasse um artista a pegar nos pincéis e a dizer: tu viajarás comigo para a eternidade. habitarás os salões das mansões e compartilharás da companhia dos nobres. dos condes. das baronesas. dos príncipes. das rainhas. da arcádia e suas paisagens ideais –  serás para sempre o meu homem. o comedor de feijões – amarrado à mão o pão. preso pela força do pulso como se dissesse: este é meu. tenho direito a ele. trabalhei – todo o homem que trabalha tem direito ao seu pedaço de pão – toalha branca. camisa branca e a jarra de vinho em tons pastel. rasgada por uns traços finos de quem. um dia.  quer ser cor forte – na mesa a fé. o pão diz-me: estou aqui. não se esqueçam de que eu e o vinho fazemos a ceia do senhor – havia esperança no cimo daquela mesa. havia futuro – às vezes gosto de imaginar que este homem é uma fraude. uma invenção do pintor. não é um jornaleiro. não é um trabalhador do campo substituindo a carne por um prato de leguminosas – não. este homem é um seu amigo veneziano. comerciante rico. encomendou-lhe o trabalho apenas para divertimento do seu excêntrico ego – talvez naquela tempo já houvesse um espécie de carnaval veneziano e o seu amigo gostasse de se disfarçar de carrejão das docas – ou quem sabe este homem fosse um nobre descendente dos fundadores do condado de bolonha. ganancioso como quase todos os ricos e poderosos. o prazer advinha-lhe dos longos passeios que dava em jeito de revista às suas terras. terras estas que se perdiam de vista. muito para além do rio pó. e entregues aos cuidados de gente que trabalhava de sol a sol. gente da terra – jornada sempre cansativa. não estava habituado a grandes esforços. parava para almoçar num dos seus muitos caseiros – em frente dele a família que o acolhia olhava com atenção o seu amo a comer – a um canto da sala um casal. da cinta ao solo de terra batida a certeza de que os campos continuarão a florir. meia dúzia de filhos. alinhados pelo tempo de criação. escutam em silêncio o barulho da boca a sorver os feijões. quentes digo eu –  só o barulho da lenha. a queimar a panela de ferro negro. competia com o ranger das mãos a rasgar o pão – aquele olhar arrasta de dentro de si um silêncio de medo – dentro daqueles pequenos olhos pretos quero ler: por que estais aí especados a olhar-me se apenas estou a comer a minha comida – gosto de imaginar o encontro dos olhos. estes que o artista pintou para me afligir no comedor de feijões. ou aqueles que quero alcançar. e que o pintor plantou dentro da minha imaginação – imagino então. sei que não mudarei um único movimento do quadro por imaginar o que quer que seja.  mesmo que dentro dos meus olhos veja os olhos de uma família humilde. honrada pelo trabalho. parada no canto da sala. deprecada em clemência silenciosa. enquanto dentro do seu corpo cintilava o orgulho e honra por ter na sua casa o homem mais poderoso da região – gosto de imaginar –  o que seria de um homem que gosta de escrever sem imaginação – por isso é que quero ainda poder ver a mulher do jornaleiro parada em frente à mesa. de olhos no chão. à espera que o seu senhor termine a refeição – ou ainda. nuns olhos acabados já no tempo do romantismo. imagino o comedor de feijões. a meter a colher à boca. no barulho de um bater de asas. um passarinho entra pela porta dentro e de bicada em bicada apanha todas as migalhas perdidas num dia especial para aquele lar. e o homem assustado pela aparição do belo não conseguiu esconder o espanto dos olhos – também eu estou a pintar. não era minha intenção substituir o carracci nesta vontade de dar cor à minha folha de papel – bem para ser franco não sei o que quero imaginar. às vezes quero apenas inventar novas tintas. misturo-as. volto a misturar. e vejo uma nova cor – agora estou a ver a jarra pintada de lilás triste – na minha cabeça quero apenas criar quadros como na época do iluminismo. época da razão. um movimento de mão artística. capaz de reformular os conceitos erradamente predeterminados para o mundo que me trouxe até aos dias de hoje – pintar um jornaleiro na época não era normal. talvez o artista quisesse ser diferente e dar um murro na mesa das elites. ou então carregado de dívidas. com os impostos em atraso. com o subsídio de férias e de natal cortados e em graves dificuldades económicas. tenha vendido a sua alma ao poder do capital – carracci sabia que este homem disfarçado de tragédia era apenas uma manobra de marketing de um dos senhores poderosos da região que desta forma quis dizer: como veem a vida está má para todos. temos de fazer sacrifícios. temos que reduzir despesas e custos de mão obra. aumentar a competitividade neste mundo que agora começa a ser global – quem sabe o pobre jornaleiro. aquele que não aparece no quadro foi despedido. extinção do posto de trabalho – a esperança está naquele naco de luz que o pintor deixou penetrar no tempo daquela gurita pendurada ao ombro do jornaleiro. protegida por uma cruz de quem sabe que a vida é sofrimento – o tempo nada trouxe de novo. tudo parece igual para os que trabalham – para a história fica apenas o pintor e o seu comedor de feijões –


sampaio rego
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