4.4.20

Na gaveta da cómoda






Na gaveta da cómoda que fizeste para me oferecer e que eu não quis, ainda permanecem todos os teus papéis importantes e cartas com novas de outros tempos, que, decerto, te fizeram sorrir e brilhar os olhos de emoção. Por isso as guardaste. Agora, tudo isso desimportante e amarelecido p'lo tempo que não deu tréguas. Outros já teriam queimado tudo, mas eu não. Gosto de guardar o passado! No baú de lata pintado de verde, onde zelosamente guardavas os retratos, encontrei-te pequeno ainda. Vestido à homem dentro de um fato de calça e casaco. Mãos nos bolsos e alpargatas nos pés. Pergunto-me, que sonhos terias tu naquela época? O que pensarias vir a ser na vida? Olho-te no retrato, ali parado, sem expressão e não consigo adivinhar-te os pensamentos. Não sei se chegaste a ser o que sonhaste. O retrato continua mudo e tu imóvel e calado. A terra haveria de reclamar-te algumas décadas depois. Ficaste-me no pensamento, nas lembranças e nos retratos. Ainda te vejo, se fechar os olhos, sentado no sofá em frente da lareira apagada e da televisão das notícias que te davam conta do mundo. E, já sem forças, dormitas na solidão dos dias infinitos, entorpecido p'lo frio que se te entranhou nos ossos e da doença que te definhou os músculos. Uma mantita sobre os joelhos e tu entretido com o tempo todo e a tua dor... 

 Cleo

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