nunca acaba. as mãos nunca acabam. elas escrevem como sempre. com o mesmo cheiro a mar. com a mesma gaivota a voar em círculos. bem sei que os círculos estão cada vez mais fechados. mas não fiques triste. só assim estão porque aprenderam a amainar os ventos. mesmo aqueles em que o vento se faz a norte dos olhos. lá para os lados do desalento. do fim do mundo – nesses dias amiga. nesses dias os olhos procuram sempre o fim do mundo. muitas vezes perdidos. desnorteados. confundidos. amedrontados pelo que ouvem aqui e acolá – mas sabes amiga. eu sei que sabes. sei tanto de ti que posso dizê-lo com toda a certeza: tu sabes que o fim do mundo fica para lá do horizonte. o que vejo todos os dias ao entardecer. quando o sol cai e a escuridão rompe pelas palavras como um farol pelo mar dos que escrevem com a noite. este farol minha amiga cuida de mim. não. cuida de todos aqueles que se atrevem a escrever com o corpo encrespado. como tu amiga. como eu que sou teu amigo – procuramos tudo dentro do corpo. até as palavras – muitas vezes sem o corpo compreender a carne cansa. desiste do belo. enruga. começa a cair aos pedaços como se de lepra se tratasse – sabes amiga. descobri que as letras também caem. caem porque é outono no corpo. e no outono as folhas cobrem sempre o chão em silêncio. o sol mais pequeno amarra-se às árvores com a luz que sobrou dos dias que já foram grandes. segura pequenas primaveras – também nós seguramos primaveras. e ficamos ainda mais belos quando não temos palavras um para outro. belos porque sabemos existir em silêncio – mas minha amiga. as letras não enganam o sol. o vento frio anuncia as primeiras geadas nas mãos onde ainda cabe tudo. mãos que apertam as janelas contra o peito que nunca acaba de encher – mas a vontade ainda é silêncio. a vontade ainda é outono. ainda há folhas por cair. ainda há outono no ar. outono dentro da janela – lá fora. do outro lado da janela que me segura. as árvores vivem agora despidas – no chão as folhas. nos ramos demoram-se os últimos sorrisos. como é possível sorrir amiga quando o corpo está nu. e o vento é um mundo desconhecido – ainda ontem era verde. ainda ontem o mundo era verde. verde esperança. ainda o tenho á frente dos olhos. dentro das mãos. dentro da janela. dentro do hoje que quero falar contigo em silêncio verde. com palavras fortes. verdes. capazes de resistir ao vento que teima em correr entre os dedos verdes também – hoje amiga. hoje minha querida amiga. que o dia está com um sol que só apanha metade da janela onde estou todo. e tu. a todo momento podes aparecer em silêncio. e em silêncio dizes-me. dizes-me silêncio. porque as folhas continuam a cair em silêncio. o mundo não acaba com os silêncios enquanto houver árvores. e há tantas árvores despidas como eu. como tu. despidas pelo outono. despidas porque gostam de meter as mãos por dentro de si para aquecer os gestos que querem deixar partir com as folhas de outono. folhas das árvores abertas ao tempo. e são tantas. sabes amiga são tantas. conto uma. duas. três. quatro. cinco e mais e mais e mais. cada vez mais mundo. e o tempo a passar entre elas em forma de vento – hoje minha amiga. é outono. é outono porque me despi para ti com palavras feitas de folhas. é um outono bonito. mesmo estando eu deste lado da janela e as folhas do outro lado. mas estou feliz. estou tão feliz que estou a fazer de conta que sou o vento. amarro nas folhas que fazem o outono e sopro para ti. sopro para o teu fim do mundo. sopro com o peito cheio de palavras que ficaram por dizer. mas se vires folhas no ar. belas. harmoniosas. livres. sorridentes. não tenhas medo. é o meu outono a fazer primavera na tua vida
sampaio rego
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