31.5.10

Este é em tua memória, Rogério


Rogério era um rapaz que nunca cresceu, não obstante os seus quarenta anos de vida. Aos dezoito, ainda era o mesmo miúdo que corria de pés descalços e gancheta em punho atrás do arco que lhe fugia rua abaixo...
Essa criança era a mesma que teimava em lhe povoar os dias e que sempre se recusou a abandonar-lhe o corpo e muito menos a cabeça.
Não foram poucas as vezes que foi visto a jogar à bola com a canalha que se juntavam no largo da capela ao fim da tarde, para onde se escapulia sempre que podia, nem que para isso fosse preciso abandonar o ancinho ou a enxada ao espanto dos queixos caídos dos seus donos, que eram os mesmos das terras para quem geralmente trabalhava no duro e por uma quantia irrisória de dinheiro. Ou então, montado na sua velha bicicleta (que comprou a um homem que costumava aparecer de quando em quando à cata de velharias de quem delas se quisessem desfazer e a quem o meu pai, em certa ocasião, também vendeu e depois se arrependeu mas já era tarde, um relógio de sala antigo e um banjo que em tempos serviu um trio de tocadores que nesses mesmos tempos se entretinham ao serão a tocar à desgarrada modas que entretanto se perderam nas brumas das memórias...) a caminho das Luadas, lugar igualmente pequeno, mas, ainda assim, bem maior do que a nossa humilde povoação, que nem uma miserável taberna tinha. E por não ter taberna e na aldeia vizinha existirem logo duas, era para lá que o Rogério ía sempre que lhe apetecia por via de afogar a sede que o consumia...
Os mais velhos bem lhe diziam que tinha de beber menos e ver se arranjava mas era uma rapariga para mor de casar visto que a sua mãe não iria durar para sempre e com o pai seria escusado contar, pois que esse nem dele mesmo sabia...
Mas ele punha os olhos no chão e começava a assobiar como quem não quer a coisa e fingia que não era nada com ele desalvorando sorrateiramente rua acima, de mãos nos bolsos e cabeça baixa, à maneira dos que se querem esconder do mundo.
Os anos foram passando e o Rogério por ali ficou, no lugar onde nasceu, calcorreando os mesmos caminhos de sempre que conhecia como a sua própria sombra, companhia assídua e fiel, sempre pronta a segui-lo fosse ele para onde quer que fosse.
Um dia soube que a mãe morreu, alguns meses depois de a irmã mais velha a ter ido buscar à cama, para onde se tinha atirado por não mais conseguir manter-se de pé por falta de forças, e levado para a sua minúscula casa lá para os lados da Picheleira de Lisboa, para onde se mudara anos antes aquando do seu casamento com um Zé rodas baixas que lhe apareceu já no tarde e a arrancou àquele inferno em que vivia...
Ainda teria de tomar conta do pai que entretanto cegara e da cama não mais saira nos oito ou nove anos que se seguiram.
De quando em vez, a vizinha, corroída de dó daquelas duas almas errantes, lá lhes chegava uma panela de sopa que fazia a mais de propósito. Mas como quem dá, não pode dar sempre e quem precisa, precisa sempre...
Foi encontrado numa certa manhã de Fevereiro, estendido no chão da eira velha, branco da geada nocturna. Tinha quarenta anos e era meu vizinho, amigo de infância e companheiro do jogo da macaca, da malha, das escondidas, do galo e das três pedrinhas (que costumávamos jogar à noitinha, sentados no banco corrido em frente à porta da oficina do meu pai) e do mesmo caminho da escola que percorríamos duas vezes por dia, pinhal abaixo e pinhal acima, da qual, nem os sete anos obrigatórios em que lá andou, chegaram para lhe ensinar a escrever o seu nome...

2 comentários:

  1. bom dia!
    fantástico! muito bem narrado esta história com um fundo imaginário muito grande.conheço pessoas assim, aliás acho que em qualquer terrinha existe uma pessoa assim.
    parabéns pela mestria com que nos brindaste ao trazer esta história do passado parao presente.

    ResponderEliminar
  2. E`verdade, estas personagens enriquecem a memoria das pessoas ( a quem tem memoria). Um dos personagens da minha infancia chamava-se Cacum. Faziam-nos tanto medo os adultos, quando falavam nele e quando morreu vim a descobrir quao grande era a sua fragilidade. Gostei muito. Venho aqui ler muitas vezes, so que nem sempre tenho tempo para comentar. Prefiro ler. Gosto deste canto. Estao de parabens! Fernanda

    ResponderEliminar