28.11.09

PARA TI, LEITOR!

Desculpa caro leitor, mas não esperes grande coisa desta crónica com sabor a derrota, não por este ou por aquele, afirmo já, mas por mim. Esta semana não quero saber quem morreu, quem se espetou de carro contra um sobreiro, não quero saber de grandes cabeçalhos que nos fazem afundar os olhos, nem tão-pouco na hipótese se daqui a poucos anos haverá ou não reformas para os velhinhos.

Estou-me nas tintas para o primeiro, segundo ou terceiro ministro, estou-me marimbando se o Benfica vai ganhar ou perder, muito menos quero saber se a gripe A vai chegar ao meu peito com sete chaves. Confesso que estou pouco puro, que ardo como uma tocha junto de um armazém de pirotecnia.

A minha cabeça está por conta do silêncio, nem sequer penso em pestanejar quanto mais levantar um braço para aquele que se vai atirar de um quinto andar. Sou assim, pronto, de palavras inteiramente dolorosas, mas sem rancor. Se a corrupção existe é porque existe um sentido na vida, ignoro ambos, por isso, quero lá saber quem rouba ou quem fica sem ele. Viu?, esta semana estou sem pontinha de céu, sem uma lágrima para contribuir para um velório.

Estou tão mal com a vida que era capaz de riscar toda a música.
Não sei o que me fizeram, nem como me tornei assim, tão dependente de ti, leitor, que me olhas por dentro das palavras escritas e daquelas que hão-de vir, que, por não teres nada na manga, vens na procura de uma salvação, ou “ignorante sabedoria”.

É triste não ter nada a te dizer, nem um ai que eu morro, nem piu de aviário, nem esmola para burlar um santo. Se ao menos num sopro tirasse deus da poltrona.
Nem cebola me faz chorar. Nadinha deste mundo. Nem do outro. Escrevo porque uso pilhas Duracell e já me prometeram a eternidade ao lado do Vasco da gama, que descobriu o que eu há muito imaginava.

Se o senhor da funerária me estiver a ler, que vá depressa encomendar meu caixão, pode ser caixote, a minha medida é: um metro e oitenta, fora os sapatos. Quero uma coisinha simples, vinte a trinta convidados em fila indiana pela rua fora, se não houver padre na frente não faz mal, há gente por aí que faz o mesmo serviço por menor preço e maior caridade.

Se eu morrer, é para que estas palavras vivam dentro do que é nosso. Como pude eu me esquecer de ti, meu leitor, da tua vinda a esta página, dos teus olhos concentrados, dos teus dedos que passam páginas sem criar vincos. Tão leves que me atrofiam de inveja por saber que eu, cronista de lugares incomuns, durmo pesado, logo, o sonho estanca. Não penses em deitar água quente ou maus-olhados sobre este texto, eu já havia pensado nisso primeiro. Repara como sangram as palavras.

Que me perdoe o balconista da pastelaria Pérola por não lhe agradecer o café bem tirado. Vim embora sem sorriso, ombros sem nivelamento, gastroenterite à superfície do rosto, lembras-te Júlio?
Mais me perdoe ainda Barcelos por lhe cavar mais fundo o rio.

Sou um cronista acabado, de hoje em diante dedicarei os meus dias a instrumentos de sopro, para que perturbe o sono dos vampiros. Leitor, não me peças para puxar sol aos textos, prefiro assim, escuro como o caraças, a ver-se-lhe os dentes branquinhos na frente, não de quem vai roer, mas de quem ri da sua própria tristeza. Não me digas as horas, elas só existem no tempo, e eu, que em tempos ofereci bússolas a mendigos, perco-me agora nesta minha indecisão de escrever estas palavras, arrancadas de limoeiro.

Dizia, esta semana a minha misericórdia deu o pifo, a fome no mundo só me faz mais uma ferida. A sensibilidade anda por mares profundos. Tudo pelo medo de te perder, não te ver mais aqui, sentado neste calhau, a ressuscitar tudo o que é meu, pois a tua ausência é como um pouco de veneno.

Leitor, antes de ires embora, dá cá um abraço, preciso de te sentir, de te agradecer como um índio. Eu sem ti sou vento sem movimento, sou um barco ali parado.
Preciso que me leias com atenção, que faças círculos com os braços, velozmente, para que tudo redemoinhe dentro deste texto, as palavras todas fora do lugar, já, imediatamente, pairando sobre este inverno, e que caiam de novo na página com outro sentido!

Qual metáforas em agulha, qual sino agora a tocar, a morte só é válida por quinze dias, que é o tempo do meu regresso.
Valeu a pena teres vindo aqui, salvaste-me da falta de talento, do ter que ferir a carne com o mesmo lápis que pintei a paisagem no meu quarto. Leitor, sem ti a música acaba-se, e as palavras - que sem os teus olhos não valem nada - também se acabam. Bem hajas!

3 comentários:

  1. "Se eu morrer, é para que estas palavras vivam dentro do que é nosso."

    de nada vale ler-te apenas uma vez,porque resiste á pimeira leitura outros segredos ,que serão desvendados após duas e três vezes.

    é bom ler estas crónicas.


    abraço.

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  2. Ah! Deliciosa inércia que se instala na sofreguidão com que o leitor se deixa sorver pela tua escrita...

    Gostei imenso, ainda que não te importes com absolutamente nada do que disseste!
    Que faria se estivesses para aí virado.

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  3. Simplesmente magnífico. Foi o primeiro texto seu que vi em toda a minha vida e achei simplesmente divinal. Anseio ler os restantes textos que navegam quietos nesta página sem folha que se vire.
    Parabéns!

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