29.5.10

Ao espelho a sua imagem não aparece. Nos vidros bem lavados das montras das boutiques, nos retrovisores dos carros, nas janelas desfeitas das fábricas abandonadas, também não. No entanto, sabia que estava vivo, o homem, que, depois ter sido ferrado por um bicho, o seu corpo deixou de espelhar.

Sombra tinha, mas essa, pouco lhe importava. É triste querermos ver o nosso rosto pela manhã, ou, simplesmente, ajeitar o cabelo e não nos vermos no objecto-espelho que a ninguém nega, excepto a este homem que, vá-se lá saber por quê, desde há muitos dias que desconhece o seu duplicado, logo, para ele, é como se não existisse, fosse uma negação de si próprio. Quem não consegue ver a sua própria cara, desconhece como passam os dias pela pele, quantas rugas nascem, e onde. E só poder tocar-lhes como um cego a ler-se.

Se está com mais cabelos brancos, apenas sabe-o pelas pessoas, que lhe dizem, ou quando alguns ficam no pente. Se isto continuar assim, não poderá ver com os seus olhos o que é envelhecer, sorrir ao espelho como qualquer mortal. Recordo: este homem foi ferrado por um bicho muito estranho, que lhe entrou no corpo e apagou a imagem da sua imagem para que somente ele não possa ver. Alguns dizem que é um bicho-maldição, coisa do outro mundo, assustadora, igual a uma criatura que trepou com as suas garras todo o abismo, outros, simplesmente, chamam-lhe de solidão.

Sem comentários:

Enviar um comentário